Parte V - De regresso ao internacional.


Passados os duros meses de adaptação ao meu primeiro Inverno escandinavo, reparei que tal como a minha vida, também a paisagem em meu redor estava em transformação. De dia para dia tudo mudava… A temperatura média voltava a valores positivos, a água voltava a estar em estado líquido, deixando para traz os valores sistematicamente negativos tradicionais do rigoroso inverno escandinavo. Os dias continuavam frios, mas apesar de lentamente, as temperaturas estavam a subir! O degelo estava em curso…


Além do transporte de mercadorias ao serviço de diferentes transitários em serviço nacional, a empresa que me contratou tinha também uma secção dedicada às mudanças ao nível internacional. Surgiu então uma vaga para motorista numa dessas equipas e fui convidado a preencher essa vaga. Seguiu-se uma longa conversa a limar algumas arestas relacionadas com as novas responsabilidades, e uma negociação que levaria a um significativo reajuste na minha remuneração e nos horários de trabalho… Assim ficou em aberto a hipótese de eu vir a incorporar essa equipa e levei esse assunto para refletir em casa. 

Foi um tema que deu origem a longas e acesas conversas entre mim e a minha Mulher! Regressar à vida de camionista internacional era algo que não era nem do meu, nem do agrado dela… Mas os números que eu consegui negociar eram muito agradáveis e difíceis de recusar! Na sequência de variadas conversas e discussões, acabou por acreditar no meu plano e aceitar este novo desafio…  

A Patrícia é uma mulher com "M" grande e esse facto é inabalável, mesmo debaixo da negra nuvem da incerteza… Mesmo sentindo a inquietude de passar os dias sozinha num país estranho, tendo a seu cargo os nossos filhos, por vezes mais agitados, talvez por também eles de alguma forma sentirem a mesma incerteza e inquietude… E mesmo a saber que tinha de lidar com tudo isso e mais algumas dificuldades relacionadas com a adaptação à nova realidade, olhou-me nos olhos e disse-me que o caminho era em frente! 

Ter uma Mulher deste calibre ao meu lado, capaz de enfrentar comigo a incerteza e a inquietude que por vezes a vida nos apresenta, tem sido uma força suplementar a somar às que já transporto como estrutura. Uma força de importância maior que nos tem empurrado para o sucesso no decorrer desta nossa enorme aventura e mudança de vida. 

Quando alguém um dia disse que o Amor move montanhas, sabia bem sobre o que falava!...

A minha guerreira e as nossas preciosidades.

Assim ficou decidido e acabei por aceitar incorporar a equipa dedicada às mudanças ao nível internacional, mas sem dar a entender que seria uma decisão tomada a prazo…Uma decisão que deu para realizar um bom encaixe financeiro. 

Passados alguns dias dei início a uma nova fase que durou pouco mais de um ano. Assim pude conhecer a Noruega de norte a sul e as suas diferentes paisagens ao longo do ano. Este novo trabalho também me levou a conhecer uma boa parte dos países vizinhos e voltar a rolar pela Europa mais a sul, matando saudades do meu antigo serviço internacional.

Esta oportunidade, apesar de difícil e complicada a vários níveis, foi um importante impulso para a adaptação da Família recém chegada, podendo dessa forma e num curto espaço de tempo, adquirir um carro familiar razoável sem recorrer ao credito financeiro, e simultaneamente mantendo um nível de vida familiar desafogado. No entanto tinha um outro pesado preço a pagar… voltar a estar longe da Família por longos períodos de tempo… voltar à dura vida de estrada!


As minhas novas funções levaram-me a conduzir predominantemente de dia, percorrendo largos milhares de quilómetros, tanto na Península Escandinávia como mais a sul, tendo dessa forma feito variadas viagens até diferentes países europeus, ficando a conhecer melhor diferentes rotas de ligação entre a Europa e Península Escandinava, umas vezes de ferry-boat, outras vezes por terra.

O facto de passar a conduzir essencialmente de dia deu-me o privilegio de apreciar melhor toda esta vasta paisagem montanhosa e todas as sua belezas. Percebi então que esta paisagem tem um enorme dinamismo. Os mesmos locais são completamente diferentes durante as varias estações do ano e cada fase tem as suas belezas e características próprias. 

No Verão está calor e os inúmeros lagos e fiordes são excelentes locais para mergulhar e passar aprazíveis horas a descansar apreciando as coloridas embarcações que aqui e ali navegam. Apesar do calor, o verão não é muito seco, permitindo que as paisagens permaneçam verdes e floridas até à queda das primeiras neves lá para o Outono.

Com a chegada do frio a paisagem começa a sofrer alterações que se notam de dia para dia. Com a súbita descida das temperaturas, as árvores de folha caduca começam a perder os tons de verde e a paisagem vai ficando dourada a avisar que dentro em breve o frio irá reinar… As enormes encostas montanhosas exibem um colorido outonal em tons quentes avermelhados, acastanhados e dourados, que contrastam com os cumes já brancos e muito frios… 

Depois vem o rigoroso Inverno despindo as árvores das suas folhas com os seus esporadicamente fortes vendavais. Caiem também longos e abundantes nevões que pintam a totalidade da paisagem de um imaculado branco! No entanto a paisagem não fica completamente monocromática. Quando iluminada pela luz solar, os variados jogos de sombras revelam tonalidades azuladas por vezes em degradê. E por vezes surgem as coloridas auroras boreais que enchem o céu noturno de magia e cor. Durante as mais frias noites, quando as temperaturas baixam dos quinze graus negativos, surgem espontaneamente minúsculas formações compostas por finas camadas de gelo, que observadas de perto se assemelham a pequenas escamas e revelam uma  geometria impressionante. Quando observadas de longe brilham magicamente ao mínimo reflexo luminoso. Até a própria humidade, que normalmente paira no ar congela, formando belos e cintilantes cristais de gelo flutuantes, espalhando magia com o seu brilhar intermitente… 

Depois as temperaturas começam lentamente a subir com a chegada da Primavera. E era essa a estação do ano que se vivia quando eu dei inicio a esta minha nova aventura pelas terras nórdicas...

(Algumas fotos dos tais cristais de gelo a que me refiro.)




Os cristais de gelo vistos de perto.

Esta fase não foi nada fácil. Além de conduzir o camião, também tinha que carregar em braços caixa a caixa, fazendo uma espécie de jogo de Tetris dentro do contentor. Tinha que aproveitar bem a cubicagem de cada contentor, e com a ajuda de alguns cobertores e cartões próprios para o efeito, garantir que tudo chegasse em perfeitas condições ao destino. Depois tinha de descarregar novamente tudo em braços.

Em muitos dos casos era também minha a responsabilidade de embalar e acondicionar em caixas todo o recheio da casa, como loiças, livros, roupas, etc... um trabalho que por vezes se estendia de um dia para o outro. É certo que este trabalho era muito bem pago, mas não podia ser de outra forma, pois também era muito complicado e bastante desgastante. Foi com a Família presente em pensamento e o meu foco nos objetivos traçados, mantendo um bom nível de resiliência e auto disciplina, que consegui levar esse desafio a bom porto, durante o tempo necessário, 

(Algumas fotos do processo de carga…)





Algumas viagens eram longas e por vezes extenuantes, percorrendo largos quilómetros  por estreitas e sinuosas estradas de montanha até alcançar a morada pretendida. Muitas vezes tinha alguma dificuldade em encontrar um local onde pudesse deixar o reboque porque a parte final só era possível ser feita com o camião. Se cometia algum descuido na interpretação do GPS, passava por dificuldades até encontrar um local onde pudesse fazer inversão de marcha em segurança, mesmo que fosse só com o camião… Por vezes pensava: "Com tantas rotundas espalhadas por esse mundo fora, agora aqui é que fazia falta uma…" Cheguei a estar metido em apertos que só de me lembrar até sinto arrepios na espinha… Alguns deles foram de tal ordem que me surpreendi a mim mesmo pela frieza e forma criativa como os solucionei… Na minha cabeça tinha o eco de algumas frases antigas que recorrentemente recordo:

"Só vence quem acredita na vitória!"
"O suor poupa o sangue!"
"É perante o obstáculo que o Homem se descobre!"
"Se é possível está feito, se é impossível há-de fazer-se!"
"Audácia, prudência… Caminho para o êxito!"
"Todos os páras são voluntários. Nem todos os voluntários conseguem a Boina Verde!"
"Que nunca por vencidos se conheçam!"


Bósnia 1996

Tenho que admitir que o meu passado militar me ajudou em muito na construção da minha estrutura mental e me ter tornado no Homem que sou hoje. Não me considero melhor que ninguém, mas sou certamente diferente da maioria!

Uma selfie de 1995 tirada com uma antiga maquina de rolo…

Para descontrair dos variados motivos de stress, tinha sempre as belas e inspiradoras paisagens como pano de fundo. Saber absorver energias positivas extraídas da observação das belas paisagens que vou atravessando é algo que tenho vindo a aperfeiçoar ao longo dos anos Considero que saber observar e identificar as diferentes formas como a beleza se apresenta na natureza também é, à sua maneira, uma forma de arte Essa é uma arte que os bons fotógrafos dominam e que eu tanto gostaria de dominar, mas o meu trabalho não me dá o tempo e calma necessária para poder bater boas chapas. Apesar de tirar muitas fotos, sinto que ainda não sei captar a real beleza que os meus olhos observam, talvez um dia

(Algumas fotos tiradas "à pressão" por mim em alturas que mereciam ser registadas. Fotos com cores originais e sem filtros…)





Foi com o coração apertado que me montei na bicicleta com as suas pesadas mochilas, lá levava toda a roupa e coisas pessoais que iria precisar durante a viagem. Mais uma vez deixava a Família para só voltar a ver uns dias depois. A sensação já me era familiar , mas mesmo assim tinha um travo amargo…Ainda não tinha carro e a bicicleta foi o meu meio de deslocação durante os tempos iniciais. Engoli em seco e pedalei com a máxima força para tentar esquecer o momento que acabou por me ficar bem marcado na memoria… 

Na véspera já tinha preparado tudo e carregado o camião com as mudanças que levava para Oslo. Depois iria carregar mais a sul de Oslo para a Bélgica e de lá para a zona centro da Noruega. Quando estivesse vazio logo se ficaria a saber o que carregar depois…


E foi ao volante de uma potente Scania que segui pela estrada fora… Eu a saudade e a estrada… E para a frente é que é o caminho! As chuvas que entretanto caíram retiraram o brilho da pouca neve ainda existente, deixando aqui e ali a paisagem despida do espesso manto branco que até então a cobria… A água ia lentamente retomando o estado líquido… As montanhas pareciam chorar sentidas lágrimas pelas várias quedas de água que entretanto descongelavam, despedindo-se assim do Inverno e revelando uma paisagem triste que se apresenta em tons acastanhados e escuros, exibindo os acinzentados afloramentos rochosos escondidos pela neve durante o duro inverno… 
Na realidade, a entrada na Primavera não é particularmente bela. É durante o degelo primaveril que se revela a amarelada paisagem queimada por passar largos meses coberta pelo espesso manto de neve. Mas em pouco tempo toda a vasta paisagem retoma a roupagem primaveril e volta a exibir a frescura perfumada dos tons verdejantes salpicados de múltiplas flores coloridas, com o som ambiente dos cânticos das aves e suas exuberantes danças amorosas… 

Todos os anos a Mãe Natureza traz de volta múltiplas formas de se revitalizar, apresentando uma eterna juventude renovada, transbordando uma imensa energia inspiradora capaz de nos ajudar recarregar baterias para seguir alegremente e com firmeza por este longo caminho chamado VIDA.


João Ferreira
27/07/2020
Tiller - Noruega


Comentários

  1. Parabéns lindas palavras sacrificios da vida, no final que valha a recompensa para nos sentir feliz e realizado, valeu apena boa sorte 🇵🇹😍😍

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