Parte V - De regresso ao internacional.
Além do transporte de mercadorias ao serviço de diferentes transitários em serviço nacional, a empresa que me contratou tinha também uma secção dedicada às mudanças ao nível internacional. Surgiu então uma vaga para motorista numa dessas equipas e fui convidado a preencher essa vaga. Seguiu-se uma longa conversa a limar algumas arestas relacionadas com as novas responsabilidades, e uma negociação que levaria a um significativo reajuste na minha remuneração e nos horários de trabalho… Assim ficou em aberto a hipótese de eu vir a incorporar essa equipa e levei esse assunto para refletir em casa.
Foi um tema que deu origem a longas e acesas conversas entre mim e a minha Mulher! Regressar à vida de camionista internacional era algo que não era nem do meu, nem do agrado dela… Mas os números que eu consegui negociar eram muito agradáveis e difíceis de recusar! Na sequência de variadas conversas e discussões, acabou por acreditar no meu plano e aceitar este novo desafio…
A Patrícia é uma mulher com "M" grande e esse facto é inabalável, mesmo debaixo da negra nuvem da incerteza… Mesmo sentindo a inquietude de passar os dias sozinha num país estranho, tendo a seu cargo os nossos filhos, por vezes mais agitados, talvez por também eles de alguma forma sentirem a mesma incerteza e inquietude… E mesmo a saber que tinha de lidar com tudo isso e mais algumas dificuldades relacionadas com a adaptação à nova realidade, olhou-me nos olhos e disse-me que o caminho era em frente!
Ter uma Mulher deste calibre ao meu lado, capaz de enfrentar comigo a incerteza e a inquietude que por vezes a vida nos apresenta, tem sido uma força suplementar a somar às que já transporto como estrutura. Uma força de importância maior que nos tem empurrado para o sucesso no decorrer desta nossa enorme aventura e mudança de vida.
Quando alguém um dia disse que o Amor move montanhas, sabia bem sobre o que falava!...
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A minha guerreira e as nossas preciosidades. |
Assim ficou decidido e acabei por aceitar incorporar a equipa dedicada às mudanças ao nível internacional, mas sem dar a entender que seria uma decisão tomada a prazo…Uma decisão que deu para realizar um bom encaixe financeiro.
Passados alguns dias dei início a uma nova fase que durou pouco mais de um ano. Assim pude conhecer a Noruega de norte a sul e as suas diferentes paisagens ao longo do ano. Este novo trabalho também me levou a conhecer uma boa parte dos países vizinhos e voltar a rolar pela Europa mais a sul, matando saudades do meu antigo serviço internacional.
Esta oportunidade, apesar de difícil e complicada a vários níveis, foi um importante impulso para a adaptação da Família recém chegada, podendo dessa forma e num curto espaço de tempo, adquirir um carro familiar razoável sem recorrer ao credito financeiro, e simultaneamente mantendo um nível de vida familiar desafogado. No entanto tinha um outro pesado preço a pagar… voltar a estar longe da Família por longos períodos de tempo… voltar à dura vida de estrada!
As minhas novas funções levaram-me a conduzir predominantemente de dia, percorrendo largos milhares de quilómetros, tanto na Península Escandinávia como mais a sul, tendo dessa forma feito variadas viagens até diferentes países europeus, ficando a conhecer melhor diferentes rotas de ligação entre a Europa e Península Escandinava, umas vezes de ferry-boat, outras vezes por terra.
O facto de passar a conduzir essencialmente de dia deu-me o privilegio de apreciar melhor toda esta vasta paisagem montanhosa e todas as sua belezas. Percebi então que esta paisagem tem um enorme dinamismo. Os mesmos locais são completamente diferentes durante as varias estações do ano e cada fase tem as suas belezas e características próprias.
No Verão está calor e os inúmeros lagos e fiordes são excelentes locais para mergulhar e passar aprazíveis horas a descansar apreciando as coloridas embarcações que aqui e ali navegam. Apesar do calor, o verão não é muito seco, permitindo que as paisagens permaneçam verdes e floridas até à queda das primeiras neves lá para o Outono.
Com a chegada do frio a paisagem começa a sofrer alterações que se notam de dia para dia. Com a súbita descida das temperaturas, as árvores de folha caduca começam a perder os tons de verde e a paisagem vai ficando dourada a avisar que dentro em breve o frio irá reinar… As enormes encostas montanhosas exibem um colorido outonal em tons quentes avermelhados, acastanhados e dourados, que contrastam com os cumes já brancos e muito frios…
Depois vem o rigoroso Inverno despindo as árvores das suas folhas com os seus esporadicamente fortes vendavais. Caiem também longos e abundantes nevões que pintam a totalidade da paisagem de um imaculado branco! No entanto a paisagem não fica completamente monocromática. Quando iluminada pela luz solar, os variados jogos de sombras revelam tonalidades azuladas por vezes em degradê. E por vezes surgem as coloridas auroras boreais que enchem o céu noturno de magia e cor. Durante as mais frias noites, quando as temperaturas baixam dos quinze graus negativos, surgem espontaneamente minúsculas formações compostas por finas camadas de gelo, que observadas de perto se assemelham a pequenas escamas e revelam uma geometria impressionante. Quando observadas de longe brilham magicamente ao mínimo reflexo luminoso. Até a própria humidade, que normalmente paira no ar congela, formando belos e cintilantes cristais de gelo flutuantes, espalhando magia com o seu brilhar intermitente…
Depois as temperaturas começam lentamente a subir com a chegada da Primavera. E era essa a estação do ano que se vivia quando eu dei inicio a esta minha nova aventura pelas terras nórdicas...
(Algumas fotos dos tais cristais de gelo a que me refiro.)
Esta fase não foi nada fácil. Além de conduzir o camião, também tinha que carregar em braços caixa a caixa, fazendo uma espécie de jogo de Tetris dentro do contentor. Tinha que aproveitar bem a cubicagem de cada contentor, e com a ajuda de alguns cobertores e cartões próprios para o efeito, garantir que tudo chegasse em perfeitas condições ao destino. Depois tinha de descarregar novamente tudo em braços.
Em muitos dos casos era também minha a responsabilidade de embalar e acondicionar em caixas todo o recheio da casa, como loiças, livros, roupas, etc... um trabalho que por vezes se estendia de um dia para o outro. É certo que este trabalho era muito bem pago, mas não podia ser de outra forma, pois também era muito complicado e bastante desgastante. Foi com a Família presente em pensamento e o meu foco nos objetivos traçados, mantendo um bom nível de resiliência e auto disciplina, que consegui levar esse desafio a bom porto, durante o tempo necessário,
(Algumas fotos do processo de carga…)
Algumas viagens eram longas e por vezes extenuantes, percorrendo largos quilómetros por estreitas e sinuosas estradas de montanha até alcançar a morada pretendida. Muitas vezes tinha alguma dificuldade em encontrar um local onde pudesse deixar o reboque porque a parte final só era possível ser feita com o camião. Se cometia algum descuido na interpretação do GPS, passava por dificuldades até encontrar um local onde pudesse fazer inversão de marcha em segurança, mesmo que fosse só com o camião… Por vezes pensava: "Com tantas rotundas espalhadas por esse mundo fora, agora aqui é que fazia falta uma…" Cheguei a estar metido em apertos que só de me lembrar até sinto arrepios na espinha… Alguns deles foram de tal ordem que me surpreendi a mim mesmo pela frieza e forma criativa como os solucionei… Na minha cabeça tinha o eco de algumas frases antigas que recorrentemente recordo:
"Só vence quem acredita na vitória!"
"O suor poupa o sangue!"
"É perante o obstáculo que o Homem se descobre!"
"Se é possível está feito, se é impossível há-de fazer-se!"
"Audácia, prudência… Caminho para o êxito!"
"Todos os páras são voluntários. Nem todos os voluntários conseguem a Boina Verde!"
"Que nunca por vencidos se conheçam!"
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Bósnia 1996 |
Tenho que admitir que o meu passado militar me ajudou em muito na construção da minha estrutura mental e me ter tornado no Homem que sou hoje. Não me considero melhor que ninguém, mas sou certamente diferente da maioria!
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Uma selfie de 1995 tirada com uma antiga maquina de rolo… |
Para descontrair dos variados motivos de stress, tinha sempre as belas e inspiradoras paisagens como pano de fundo. Saber absorver energias positivas extraídas da observação das belas paisagens que vou atravessando é algo que tenho vindo a aperfeiçoar ao longo dos anos… Considero que saber observar e identificar as diferentes formas como a beleza se apresenta na natureza também é, à sua maneira, uma forma de arte… Essa é uma arte que os bons fotógrafos dominam e que eu tanto gostaria de dominar, mas o meu trabalho não me dá o tempo e calma necessária para poder bater boas chapas. Apesar de tirar muitas fotos, sinto que ainda não sei captar a real beleza que os meus olhos observam, talvez um dia…
(Algumas fotos tiradas "à pressão" por mim em alturas que mereciam ser registadas. Fotos com cores originais e sem filtros…)
Foi com o coração apertado que me montei na bicicleta com as suas pesadas mochilas, lá levava toda a roupa e coisas pessoais que iria precisar durante a viagem. Mais uma vez deixava a Família para só voltar a ver uns dias depois. A sensação já me era familiar , mas mesmo assim tinha um travo amargo…Ainda não tinha carro e a bicicleta foi o meu meio de deslocação durante os tempos iniciais. Engoli em seco e pedalei com a máxima força para tentar esquecer o momento que acabou por me ficar bem marcado na memoria…
Na véspera já tinha preparado tudo e carregado o camião com as mudanças que levava para Oslo. Depois iria carregar mais a sul de Oslo para a Bélgica e de lá para a zona centro da Noruega. Quando estivesse vazio logo se ficaria a saber o que carregar depois…
E foi ao volante de uma potente Scania que segui pela estrada fora… Eu a saudade e a estrada… E para a frente é que é o caminho! As chuvas que entretanto caíram retiraram o brilho da pouca neve ainda existente, deixando aqui e ali a paisagem despida do espesso manto branco que até então a cobria… A água ia lentamente retomando o estado líquido… As montanhas pareciam chorar sentidas lágrimas pelas várias quedas de água que entretanto descongelavam, despedindo-se assim do Inverno e revelando uma paisagem triste que se apresenta em tons acastanhados e escuros, exibindo os acinzentados afloramentos rochosos escondidos pela neve durante o duro inverno…
Na realidade, a entrada na Primavera não é particularmente bela. É durante o degelo primaveril que se revela a amarelada paisagem queimada por passar largos meses coberta pelo espesso manto de neve. Mas em pouco tempo toda a vasta paisagem retoma a roupagem primaveril e volta a exibir a frescura perfumada dos tons verdejantes salpicados de múltiplas flores coloridas, com o som ambiente dos cânticos das aves e suas exuberantes danças amorosas…
Todos os anos a Mãe Natureza traz de volta múltiplas formas de se revitalizar, apresentando uma eterna juventude renovada, transbordando uma imensa energia inspiradora capaz de nos ajudar recarregar baterias para seguir alegremente e com firmeza por este longo caminho chamado VIDA.
João Ferreira
27/07/2020
Tiller - Noruega
27/07/2020
Tiller - Noruega
Parabéns lindas palavras sacrificios da vida, no final que valha a recompensa para nos sentir feliz e realizado, valeu apena boa sorte 🇵🇹😍😍
ResponderEliminarMuito obrigado amiga.
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