Parte II - Conhecer Trondheim.

Ainda tenho bem presente o dia em que aterrei pela primeira vez em Trondheim, e penso que essa memoria me ira acompanhar por muitos anos e muitos anos. 

Lembro-me e parece que foi ontem… 

Estávamos no fim do verão de 2018... um dia encoberto mas com o sol a espreitar esporadicamente! Em meu redor uma quantidade de montanhas banhadas pelo fiorde! No ar pairava aquele familiar aroma a combustível de avião normal em qualquer aeroporto, fazendo-me recuar no tempo até aos dias dos operacionais saltos militares. Tal facto misturado com alguma ansiedade que transportava, despertou em mim uma conhecida sensação difícil de explicar. Uma espécie de stress misturado com calma e vontade de agir, mantendo os sentidos em alerta ficando automaticamente pronto para lidar com o inesperado. Talvez reflexos do treino militar…

Por mais anos que se viva, existem certos momentos determinantes da vida que marcam de forma indelével os registos da memoria! A minha chegada a Trondheim a par com a partida de Lisboa, foram dois desses momentos!

Foto no jardim botânico de Trondheim.

Apesar das chuvas frequentes, ainda apanhei muitos dias agradáveis e solarengos até à chegada do já espectável frio norueguês.

Parte das minhas primeiras folgas serviram para tratar da burocracia necessária à minha legalização, muitas vezes com a preciosa e decisiva ajuda do meu velho amigo e camarada d'armas Ricardo Tome. Apesar de ter sido eu a traçar todo este processo e a percorrer todo o caminho que me levou ao reencontro com a minha Família, devo salientar toda a ajuda inicial dada pelo camarada Tomé e sua esposa, facilitando em muito a minha fase inicial de adaptação e dando verdadeiro sentido à fraternidade que se vive entre os membros da enorme Família Paraquedista.

Simpática praia próxima do jardim botânico.

Por vezes fazíamos agradáveis passeios. Recordo-me do primeiro passeio que fizemos pelo jardim botânico local. Nesse dia o meu camarada de armas Tomé e sua família, levaram-me a conhecer o Ringve Botaniske Hage, onde também fica o Ringve Music Museum e outros locais de interesse relacionados com a vida militar do país. Foi uma tarde bem passada que terminou numa aprazível esplanada localizada próxima de uma pequena praia. Toda a paisagem envolvente era montanhosa!  Aos nossos pés o fiorde… Tomar algo revigorante depois de uma caminhada com esta paisagem como pano de fundo era inspirador.  A natureza por cá proporciona belos momentos de contemplação.

O fiorde…

Atualmente com cerca de 198 mil habitantes, Trondheim é uma cidade pequena, muito mais calma e pacata que Lisboa com os seus cerca de 506 mil habitantes. À semelhança de Lisboa, também é banhada pelas salgadas águas do mar, neste caso por um fiorde.

Ao passear pela cidade sentia uma agradável harmonia entre as partes mais antigas e a enorme quantidade de edifícios novos. Na realidade existem zonas onde estão misturados de tal forma que nem se entende bem o que é antigo ou moderno. Noutras zonas a diferença é evidente, mas sempre em equilibrada coexistência. Posso afirmar que em Trondheim o antigo e o moderno são como dois amigos que convivem de forma harmoniosa com a natureza. Os cuidados com o meio ambiente são evidentes. É enorme a quantidade de espaços verdes espalhados estrategicamente pela cidade, muitos deles com numerosas diversões apetecíveis para crianças e também para adultos, como bons e pacatos recantos com confortáveis bancos para descansar ou porventura desfolhar um bom livro…

Trondheim…

Também me saltou à vista a quantidade de obras de melhoramento que decorriam, algumas delas relacionadas com a aplicação de sistemas de aquecimento do chão especialmente em alguns passeios e paragens de autocarro, para manter essas zonas livres de gelo durante o rigoroso inverno, evitando inadvertidas quedas. No meu primeiro inverno entendi logo a importância destes pequenos pormenores. Caminhar sobre gelo não é tarefa fácil…

Trondheim.

Por enquanto ainda pouco sei da historia desta bela cidade, mas pelo pouco que já pesquisei, sei que Trondheim foi fundada pelo Rei Olavo I em 997 e tornou-se na primeira capital da Noruega entre 1030 e 1217. Tem a catedral com a localização mais setentrional do mundo, a Nidarosdomen, construída sobre o túmulo de Santo Olavo com inicio das obras em 1070, local onde tradicionalmente é feita a cerimonia de coroação dos monarcas noruegueses.

Nidarosdomen.

Zona antiga de Trondheim.

Em Trondheim boa parte dos edifícios são de madeira, dando um ar pitoresco à acolhedora cidade. Mas essa característica também foi no passado, como noutras cidades antigas, um enorme problema. A historia desta cidades está repleta de múltiplos episódios com incêndios, tendo sido os mais graves em: 1598, 1651, 1681, 1708, 1717 (dois neste ano), 1742, 1788, 1841 e 1842. O maior de todos foi o de 1651 tendo destruído cerca de 90% dos edifícios, obrigando a uma quase total renovação de toda a cidade, repensando a sua estrutura.

Trondheim foi também o palco do final da era Viking, marcada pela da batalha de Stiklestad no ano de 1030. Esta foi uma das mais celebres batalhas da historia da Noruega, estando na origem do conflito a cristianização da Noruega. Durante esta batalha o Rei Olavo II da Noruega, que comandava um exercito composto por soldados da antiga Guarda Real, habitantes locais e alguns saqueadores, foi morto pelo exercito cristão, que em maior numero era composto por camponeses, grandes agricultores e alguns nobres. Passados anos, em 1162 Olavo II foi canonizado pelo Papa Alexandre III, tornando-se no santo patrono da Noruega e "Rex Perpetuum Norvegiae" ( Eterno Rei da Noruega). 

E muito mais ainda tenho para aprender sobre a historia desta bela cidade… 
Uma cidade que tal como a grande maioria das cidades europeias, está cheia de pontos de interesse!

Recordo-me como na fase inicial, durante os meus passeios de lazer ou mesmo a trabalhar, descobria com frequência coisas que me surpreendiam. Foi assim que descobri a Dora, uma impressionante estrutura blindada, onde durante a ocupação nazi, Hitler guardava boa parte da sua frota de submarinos. Agora transformada numa zona industrial, onde entre outras coisas se localiza uma fabrica de chocolates. Já lá carreguei alguns contentores e fiquei impressionado com as enormes dimensões do edifício fortemente blindado, ao ponto de eu entrar para o seu interior com um camião articulado e subir ao primeiro andar onde se localizam parte dos cais de carga. Depois de uma pesquisa descobri que apos a expulsão do exercito nazi, o estado norueguês planeou demolir este agrupamento de edifícios fortemente blindados. Mas depois de varias tentativas frustradas conclui-se que a sua demolição seria muito complicada e dispendiosa, tomando a decisão de requalificar as construções para utilização civil. Também descobri que parte das estruturas blindadas são atualmente utilizadas como caixa forte, onde são armazenados importantes documentos estatais.

A Dora…

Certo dia descobri uma longa avenida com um moderno centro comercial que muito se assemelhava a um enorme hangar militar. Foi exatamente a arquitetura desse edifício que me levantou alguma curiosidade e lá fui eu pesquisar… Descobri que a avenida estava construída em cima do que tinha sido um antigo aeroporto militar e que o edifício onde agora está o centro comercia tinha sido um dos vários hangares de apoio. Também lá fui variadas vezes em trabalho para descarregar algumas paletes de abastecimento para o comercio local.

Noutro dia, durante uma viagem de trabalho para o norte, saltou-me à vista uma escultora de teor militar localizada a um recanto do fiorde de Trondheim. Tratava-se do Tirpitz Memorial, escultura feita para homenagear os aviadores aliados abatidos durante os diversos combates que ali se travaram para tentar afundar o Tirpitz, um enorme couraçado nazi que ali esteve atracado durante a segunda guerra mundial. O Tipitz foi um couraçado nazi irmão do Bismarck, que mais tarde acabou por ser afundado pela força aérea britânica na zona norte da Noruega.

Também durante os meus passeios de lazer destinados a descontrair, aproveitava para explorar Trondheim e descobri mais pontos de interesse. Foi assim que encontrei o agradável parque de merendas construído mesmo junto da antiga barragem hidroelétrica, a Nedre Leirfoss Kraftverk. Inaugurado a 1910 e projetado pelo arquiteto Axel Guldahl, o edifício da usina tem uma arquitetura peculiar, fazendo lembrar um pequeno castelo medieval. Este antigo complexo hidroelétrico já alimenta Trondheim desde o inicio do século passado. Atualmente a cidade tem outras soluções para o abastecimento elétrico, mas depois de diferentes modernizações técnicas, mantendo o aspeto arquitetónico original, ainda está atualmente operacional. O parque de merendas construído nas suas imediações é um local  muito agradável, com um belo relvado e locais próprios para fazer churrasco. Tendo o peculiar edifício como pano de fundo, é uma bela zona de lazer também com uma magnifica praia fluvial. Depois, descendo junto ao rio através de um trilho seguro e bem sinalizado, descobri variados locais devidamente equipados com mesas e bancos de madeira, destinados à pesca desportiva.  Locais também muito bons para simplesmente ficar a descontrair e apreciar as belezas da natureza…  

Rio Nidelva.

Passeava e ia memorizando muitos desses locais, traçando planos para no futuro poder revisita-los com mais atenção, mas já na companhia da minha Família.

Com o passar dos dias a temperatura foi baixando, baixando e baixando ainda mais. Com a chegada do outono a paisagem que até então era verdejante e florida, começou a mudar. As árvores de folha caduca foram ficando primeiro amareladas, depois douradas e por fim totalmente despidas. Os campos começaram a ficar com um ar amarelado, e de um dia para o outro tudo ficou branco.

Inverno…

Com a queda das primeiras neves vieram também novas dificuldades para a minha profissão. Altura certa para por em pratica todos os concelhos e novas técnicas de condução que fui aprendendo durante os meus primeiros tempos de formação na empresa. Até aqui era só teoria mas agora começava a ter que lidar com situações reais como: sentir o volante muito leve e o carro a não responder convenientemente às mudanças de direção; querer travar e o carro não responder à travagem da forma normalmente espectável; ter que fazer algumas subidas com a caixa manual; saber passar peso para o eixo de tração em andamento; saber como e quando decidir por as correntes nas rodas, antes de ser tarde de mais; saber que nunca se pára um camião numa subida congelada; entre outros cuidados especiais… Com o passar do tempo fui ganhando cada vez mais confiança na minha condução nestas difíceis condições climatéricas, no entanto os sustos iam surgindo como um aviso que nestas condições nunca devemos andar próximo dos limites aceitáveis! Tudo deve acontecer sempre com muita folga para que se minimize ao máximo a probabilidade de acidente. 

As correntes ainda penduradas e completamente congeladas!

Eu e a minha ferramenta preferida para lidar com o gelo!

As correntes colocadas…

Conforme ia entrando dentro do inverno reparava que era grande a frequência, por vezes quase diária, de passar por camiões acidentados ou metidos dentro da valeta. Bons lembretes para me manter sempre em alerta. Rapidamente percebi que uma pequena distração podia acabar num enorme problema.

Um dos tantos despistes …

Outro despiste…

Outro despiste, um pouco mais complicado.

Acabei por pegar em tudo aquilo que eu já sabia sobre condução defensiva, e juntei mais uma boa quantidade de informação nova relacionada com a condução no gelo. O resultado tem sido francamente positivo.

A estrada em dia de nevão forte…

Com estas experiências novas confirmei que por muito conhecimento acumulado que se tenha sobre qualquer assunto, existe sempre algo de novo para aprender. Quem pensa que sabe tudo sobre uma determinada matéria, acaba fechado dentro da sua própria arrogância e bloqueia a capacidade de aprender coisas novas e de poder melhorar os conceitos anteriormente adquiridos. 

Uma mente aberta é sempre uma mente mais saudável e capaz de ir mais além.

Vídeo a rolar no inverno…

Os dias foram ficando visivelmente mais pequenos. Nos primeiros tempos eu fazia um serviço de linha entre Trondheim e Oslo com um conjunto de 25 metros. As viagens eram sempre noturnas e mesmo pegando no camião sempre à mesma hora, com o passar dos dias a noite chegava cada vez mais cedo, até ao dia em que quando começava já era de noite.

Um dos conjuntos com que fiz muitas viagens!

Uma noite, sem aviso prévio, tive o meu primeiro susto com um alce a atravessar estrada!... Já me tinha cruzado com algumas raposas e outros animais de pequeno porte, mas com um alce foi a primeira vez! Um alce adulto é um animal enorme, podendo medir mais de dois metros e pesar mais de quatrocentos quilos. O embate em caso de atropelamento é enorme e os danos no camião podem ser graves, tal como no condutor… Graças a alguma perícia, sangue frio e sorte, consegui evitar a colisão com o enorme animal… Já os tinha visto a pastar nas bermas, mas nunca a atravessar a estrada… Há sempre uma primeira vez! Nesse dia entendi melhor o porquê de quase todos os carros, pesados e ligeiros, estarem equipados com bons faróis de longo alcance… Aqui a vida selvagem é muito diversificada e o cruzamento com animais selvagens é muito usual como: veados, renas, raposas, entre outros animais que vivem livremente nos vastos terrenos selvagens que atravessava diariamente para chegar a Oslo.

Apesar das dificuldades, a paisagem de inverno é bastante interessante.

Uma das coisas que me tem agradado neste país, é que apesar de ser um país desenvolvido e civilizado, sabe como respeitar a vida selvagem, encontrando um bom ponto de equilíbrio entre o Homem e a Natureza! Este país, que tem atualmente a base da sua economia assente na extração de petróleo, é a prova que o progresso não tem que ser sinónimo da destruição desmedida dos recursos naturais! Também terá os seus defeitos, mas a perfeição total ainda não está ao alcance da espécie humana!


João Ferreira
15/03/2020
Tiller - Noruega







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