Parte IV - Memorias de Inverno.

Como o tempo passa…

Estávamos em Dezembro de 2018 e a temperatura continuava a baixar atingindo assustadores níveis negativos, passando facilmente dos dez graus na zona de Trondheim, podendo baixar dos vinte nas zonas montanhosas. Os desafios que as estradas apresentavam eram cada vez mais exigentes, mas sentia-me confiante e sabia que estava à altura.

Bósnia 1996

Recordava com frequência, a minha passagem pelas frias montanhas dos Balcãs, durante a missão NATO que incorporei. Apesar de por cá as temperaturas serem muito exigentes, naquele tempo as condições eram outras, sem limpa neves ou qualquer outra manutenção relacionada com a limpeza das estradas. As condições eram bastante adversas, sobre diferentes pontos de vista. Cada missão era executada com o máximo de operacionalidade possível tentando assegurar o sucesso, muitas vezes tendo que ultrapassar inesperados problemas que nem sempre eram de fácil resolução…

Muito por lá aprendi!...

Quando tínhamos que sair em missão, ligava a tração, punha as correntes e assim fazia os centenas de quilómetros diários de patrulhas durante o também rigoroso inverno daquelas paragens. Outros tempos… Outra realidade! Não há comparação possível. Lá era um ambiente de guerra, com estradas muito más e fustigadas pelos combates… Aqui a realidade é outra bem diferente, no entanto também a rede de estradas é de fraca qualidade, exigindo cuidados específicos na condução, principalmente durante o Inverno.

Bósnia 1996

Prensar naqueles tempos em que tive que enfrentar diferentes tipos de desafios com um alto grau de dificuldade, dava-me uma confiança reforçada para enfrentar que agora tinha pela frente!

Em patrulha… Bósnia 1996

Por cá estou numa sociedade civilizada e organizada, mas com uma a rede de estradas medíocre, em parte por culpa do agressivo relevo, mas não só. As autoestradas são praticamente inexistentes, no entanto já muito foi melhorado e continuam a melhor. Estão atualmente espalhadas, literalmente de norte a sul do país, variadas obras de alargamento de vias, construção de túneis e pontes, mas o agressivo relevo não ajuda, tornando as obras muito morosas e dispendiosas.
Posso afirmar, sem sombra de dúvida, que atualmente a rede de estradas de Portugal é muito melhor que a rede de estradas da Noruega. Para se poder comparar basta fazer uma breve observação das estradas através do https://www.google.com/maps , dando para entender melhor aquilo a que me refiro.

Muito embora a Noruega ser atualmente um dos países mais ricos do mundo, as coisas não foram sempre assim. Na realidade só em meados dos anos setenta é que a Noruega começou a enriquecer com a exploração sustentada de petróleo. Até essa altura a Noruega estava entre os países mais pobres da zona europeia… Apesar do petróleo ter um papel importante na atual riqueza deste pais, devo assinalar que antes da importante descoberta de petróleo, já a economia estava em crescimento desde do início dos anos setenta. Nessa altura, a criação de riqueza, era baseada na industrialização da agricultura e pesca a par com o reflorestamento do território ligado ao negócio das madeiras. Também havia uma tendência crescente do tecido industrial, mas nada comparável com o forte impulso ao crescimento trazido pelo petróleo.


Plataforma petrolífera no Mar do Norte.
Foto de minha autoria tirada durante uma travessia entre a Península Escandinava e as ilhas do Reino Unido.

No que respeita à rentável exploração de petróleo, tudo começou quando em 1965 se concederam as primeiras licenças de prospeção e perfuração.


Em 1966 a Esso foi a primeira companhia a iniciar as perfurações em território norueguês. Depois os primeiros sinais de hidrocarbonetos foram encontrados dois anos mais tarde, em 1968. No entanto, só no final de 1969 é que se descobre petróleo em quantidades consideráveis tornando rentável a sua exploração. Essa descoberta foi feita pela Phillipps Petroleum Company, na zona mais meridional da plataforma continental norueguesa chamada de Ekofisk. Nesse local também se descobriu uma quantidade interessante de gás natural. Mas a exploração de petróleo só começou a ser realmente rentável para a Noruega em 1976, quando foi possível ultrapassar o consumo anual interno obtendo um excedente de 4,6 toneladas de petróleo.

Noto que, a recente riqueza deste país tem dado prioridade à qualidade de vida dos seus habitantes com a construção de escolas, hospitais, criação de novas zonas habitacionais, entre outras coisas... Mas muito ainda há para fazer nas infraestruturas relacionadas com os transportes rodoviários, no entanto já muito foi feito. Sinto que este país ainda está em crescimento, sendo um terreno bastante fértil para aventureiros destemidos que não tenham medo de trabalhar em difíceis condições atmosféricas.

Gosto de pesquisar e aprender sobre a historia dos locais por onde vou passando. Agora que vivo cá, na Noruega, vou dando alguma atenção há história deste país.
Com as variadas pesquisas superficiais que já fiz, aprendi alguns factos que me têm ajudado a enquadrar melhor a fraca qualidade das estradas e também entender melhor a realidade onde agora estou inserido, podendo assim estabelecer melhores planos para o futuro.


Alem de recordar os ensinamentos que trazia das minhas experiências passadas, revia com frequência os ensinamentos específicos que fui recebendo relacionados com os variados sistemas que equipam os diferentes camiões que cá circulam, mas não há escola melhor que a experiência. Também aproveitava as pequenas pausas para, sempre que possível, trocar impressões com outros motoristas que com o tempo fui conhecendo. Lançava perguntas às quais eu já sabia uma possível resposta, na esperança de poder aprender novas e diferentes técnicas para os mesmos problemas. Com a vida aprendi que existem sempre outras técnicas possíveis para fazer aquilo que já sabemos.

A aprendizagem é um processo contínuo...

Com neve e frio, mas felizes.

Com a Família por perto a minha autoconfiança estava reforçada, dando-me um estado de espírito muito mais tranquilo podendo olhar para as paisagens com outros olhos, dando uma outra atenção a certos pormenores que até então passavam despercebidos.


Igreja de Kvikne.

Recordo-me de uma noite especialmente bela, que trago gravada na memória. Depois dessa noite já vivi muitas outras semelhantes, mas aquela ficou-me gravada, talvez por ter sido a primeira de muitas, com tais características.

Antes de iniciar a minha viagem, reparei como a temperatura estava especialmente baixa, cobrindo tudo com uma fina camada de cintilantes cristais de gelo. Quando a temperatura baixa dos dez graus negativos, essas formas bicudas e laminadas de gelo, surgem espontaneamente por todo o lado. Quando observadas de perto, revelam uma beleza e pormenor bastante interessante.






Tentei fotografar aquilo que me rodeava, mas as fotos em nada se assemelham com aquilo que a minha vista registava… Aquilo que a máquina não consegue captar fica gravado na memória…



Já era de noite quando dei início a mais uma viagem de regresso a Trondheim. A paisagem estava branca e cintilante… Todo aquilo que era iluminado, pelos potentes faróis de longo alcance, cintilava ao ritmo do meu movimento. A estrada brilhava de forma especial, lembrando os cuidados a ter com a condução… O perigo de derrapar era eminente! Adequei a velocidade às condições, executando uma condução híper defensiva, praticamente sem travar.

Por vezes sentia a direção demasiado leve, sinal que o piso estava especialmente escorregadio. Nas subidas sentia o carro perder aderência. Decidi tirar algumas toneladas do eixo morto, transferindo-as para o eixo de tração, promovendo assim uma melhor aderência e estabilidade ao carro. Sempre com uma condução segura e adaptada às circunstâncias, fui seguindo, pela serpenteante e perigosa estrada, dando especial atenção ao espetáculo que se apresentava à minha frente. No ar pairavam cristais de gelo, semelhantes a pequenas escamas, que cintilavam suspensos,  dando evidência à magia que eu absorvia com o meu olhar…

Para ajudar a este belo espetáculo natural, a lua apresentava-se cheia e bem redonda com um tom ligeiramente avermelhado, espalhando magia… a sua iluminação noturna que quase tornava florescente a cintilante paisagem branca.

O céu apresentava-se praticamente despido de nuvens, deixando a vastidão do espaço estrelado à mostra, fazendo lembrar como somos tão pequenos e frágeis no imenso universo…



Uma bela e pequena raposa branca atravessou-se à minha frente, correndo e saltitando apressadamente pelo frio e gelado caminho, escondeu-se na paisagem e ficou estática, denunciada pelo seu também cintilante olhar!... Pouco depois consegui identificar a inconfundível silhueta de dois enormes alces caminhando por entre a despida vegetação… Param e olham na minha direção, ficando também com os olhos cintilantes a denunciar a sua localização!...

Os rios que teimosamente correm no seu incessante movimento, estavam meio congelados, correndo lentamente por entre grossas  placas de gelo com bizarras formas esculpidas conjuntamente pelas baixas temperaturas e o movimento das águas… As quedas de água, que montanha a baixo alimentam os rios, ficaram congeladas e estáticas, deixando adivinhar um frenético movimento que por agora está em pausa. Tudo isto iluminado por um belo e potente luar, que por vezes me fazia esquecer que rolava de noite.

Ser motorista esconde o privilégio de poder apreciar as paisagem que estão para lá da estrada e viver momentos únicos que só alguns sabem realmente apreciar… Afinal todos os nossos momentos pertencem à vida, mesmo a trabalhar estamos a viver podendo apreciar e aproveitar estes belos espetáculos que passam ao lado dos mais distraídos…

Depois de umas largas centenas de quilómetros a rolar através de montes e vales, sempre com a lua como companhia nesta noite especialmente branca, alcancei Trondheim.
Chegar a casa e ter a Família para me receber torna tudo mais fácil. Pena que andamos com os horários trocados… quando eles acordam é a minha altura de descansar e retemperar as forças para mais uma noite de trabalho… comi alguma coisa e fui dormir.

Enquanto dormia senti a presença de um anjo… Tinha as mãos pequenas e acariciava-me a face.
Eu dormia… repousava os pensamentos no descanso e sentia as carícias daquelas pequenas e delicadas mãos… A cada carícia recebia uma nova carga de energia que me retemperava as forças.

Perdi a noção do tempo… Simplesmente dormia…

Entretanto, sem acordar totalmente, abri um olho e lá estava o meu anjo… Era a minha Flor!
Depois de ter acordado da sua cesta, e ao saber da presença do pai, veio para junto de mim e permaneceu ao meu lado com a mesma dedicação com que eu estive estive ao lado da sua mãe no dia do seu nascimento… Acariciava-me com o mesmo carinho e Amor com que eu a acariciei quando lhe peguei ao colo logo após lhe cortar o cordão umbilical… Carícias que pareciam querer retribuir todo o Amor que eu apliquei nas muitas fraldas por mim mudadas… Carícias que pareciam agradecer todo o meu esforço de trabalho para termos um futuro melhor… Carícias puras… Carícias boas!...

Voltei a adormecer com tão agradável presença e voltei a perder a noção do tempo…

Depois soube que ali ficou embevecida a ver-me dormir e a acariciar-me ainda durante um bom par de horas… Mas que dedicação… Mas que Amor… Mas que momento!

Um anjo chamado Flor....❤️💗

De todos os níveis existentes de Amor, o mais profundo puro e incondicional é o Amor dos Pais pelos seus Filhos, que é naturalmente retribuído com a doçura e inocência da crianças, transportando uma tal intensidade que só quem sente realmente entende!

Duas preciosidades...❤️💗❤️💗

Dentro da Família encontro forças para percorrer os mais difíceis e penosos caminhos que a vida me apresentar!

João Ferreira
29/03/2020
Tiller - Noruega


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